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Se a realidade não existe, e tudo são interpretações, eu posso interpretar qualquer coisa do jeito que eu quiser?

Imagine um universo alternativo onde tudo o que você vê da
realidade física é resultado não da luz incidindo sobre a matéria simplesmente,
mas sim da vontade representativa de alguém. Explico melhor. Se você visitar um
país onde a maioria da população interpreta a cor do céu como sendo verde, é
verde que você o vê.

Agora imagine fazer negócios nesse universo alternativo. Você
quer comprar um terreno, vê um anúncio com foto de um lindo gramado parecendo
um campo de golfe, com área, localização e preço compatíveis. Chega lá,
confirma com seus próprios olhos a veracidade da foto. Maravilha! No entanto,
ao pisar no terreno, percebe que seus pés afundam num charco fedido. E há
trechos do terreno tão inclinados que só um alpinista se disporia a adquiri-lo.
Imagens, palavras e fatos não valerão nada. Ruim, não?

Guardadas as devidas proporções, estamos a cada dia
embarcando mais e mais em algo assim. As interpretações e representações ocupam
o lugar do Real de outrora, quando tudo era mais simples.

A intenção, a princípio, era até boa. Depois dos gregos se
debruçarem com fúria sobre a metafísica, sobre o que seria um Real essencial, a
filosofia de Kant, no século XVIII, percebeu que esse Real inequívoco e único
não passava de uma ilusão.  Em nome da
busca da Verdade, tivemos de admitir que esta realidade em-si era inatingível,
que o máximo que podíamos obter dela eram impressões, fruto ora da distorção
dos nossos sentidos, ora da distorção de nossas ideias pré concebidas.

Isso aconteceu também pelo bom motivo de que a filosofia se
sentiu refém dos avanços extraordinários da ciência, preferindo deixar o
real-em-si para ela, se recolhendo tristemente à tarefa menor de regular as
representações do mundo. Como acontecem, porque acontecem, o que vem primeiro,
o real ou a sua interpretação, será que existe mesmo algo real ou é tudo uma
versão conveniente produzida pela classe dominante, e por aí vai. Os últimos 2
séculos de filosofia se concentraram fundamentalmente nisso. E praticamente
ninguém voltou a falar em metafísica, ou ao real a priori.

O capitalismo eletrônico também deu sua contribuição ao
transformar qualquer coisa que se mexa em clientes. E clientes, como todos
sabemos, têm sempre a razão. Desde que você use seu cartão de crédito, você tem
direito a interpretar o real do jeito que quiser. Absolutamente tudo que é
humano sofre com essa era da hiper representação progressivamente descolada da
realidade. Às vezes sobra até para a ciência, acusada de pacto com o demônio
graças a sua insistência em vacinas e Terra esférica. Claro, todas as
conquistas identitárias recentes vieram acompanhadas de hábitos caros de
consumo. Pelo menos no Brasil, não me lembro das reivindicações libertárias dos
40% da mão de obra ativa que têm empregos informais sem direito a nada, ou dos
40% de presos em situação “provisória”, ou dos 48% de lares s em esgoto.

Resultado: crise de grandes proporções na confiança dos
cidadãos, cada vez mais carentes de algo “de verdade”. O boom dos reality shows
atendeu a essa demanda por mais realidade (ainda que de forma equivocada),
muitos filmes passaram a se basear em fatos reais, tudo para dar uma resposta a
esse mundo incerto e evaporante. Desembocamos no mundo recente das fake News,
um passo mais longe rumo à permissão de re-significar tudo o tempo todo. Trump
“viu” sua festa de eleito como a mais cheia de gente da história, os
documentários perderam a ambição de documentar fatos e se contentaram com
documentar as visões e as vontades do seu diretor.

O Real tem apanhado muito no que parece com uma segunda
Idade Média. E junto com ele a Verdade. Só pessoas muito chatas ou obsessivas
se metem a distinguir verdadeiro de falso. Todos se ocupam de se apropriar de
“narrativas”, todos viraram romancistas ou roteiristas de ficção buscando o
máximo efeito, a máxima catarse. Chegamos no ponto de alguém precisar gritar,
em meio a balbúrdia generalizada, “hei, cada um tem direito às próprias
opiniões, mas não aos próprios fatos”. Isso deveria ser meio óbvio, não?

Para além da falência moral de uma sociedade de mentirosos
em tempo integral, qual o outro risco grave que resulta disso? Ao ampliar a
distância entre fato objetivo e impressões pessoais subjetivas nos tornamos
reféns de nós mesmos, da parte não saudável de nossas mentes que, para nosso
desespero, fabrica versões do real
compulsivamente, toda a vez que temos desejos frustrados e reprimidos. E quem
não os têm? Com o enfraquecimento da prova de realidade, nossas paranoias,
neuroses e psicoses encontram pista livre para acelerar à vontade.

Ruim, né?

O post Se a realidade não existe, e tudo são interpretações, eu posso interpretar qualquer coisa do jeito que eu quiser? apareceu primeiro em Crônicas Não branco Não homem.