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Prá um movimento ficar popular, ele precisa nos dar a chance de jogar a culpa em alguém

(TRECHO de Não Branco Não Homem – vol. 2) Na reunião do partido, o Consultor (é o nome do marqueteiro infalível, um senhor de seus 90 anos, bem corcunda) dá sua opinião sobre como criar um movimento popular para ajudar o candidato na eleição de prefeito:

Alexandre, o mentor da idéia da passeata, foi chamado a dar sua
contribuição. E, com muita propriedade, defendeu a inauguração de um movimento,
algo com forte poder agregador das bases mais jovens, algo que pudesse ser
seguido por todos e que, sobretudo, levasse a potente e irrefutável mensagem de
que a ascensão do PON representava um grande avanço na perseguição de uma
sociedade mais justa e igualitária, onde o pobre teria o direito assegurado à
educação, à saúde e, mais do que tudo, à sua dignidade de cidadão. Foi
intensamente aplaudido e ouvido com muita atenção pelo Consultor. Por fim, este
fez a sua entrada:

– Entendi, entendi. Está certo. Um movimento. Isto está muito bom. Mas se você quer um movimento que cole pra valer, que seja seguido por todos, precisa elaborar algo onde se possa fazer acusações ao outro, como se quem acusasse fosse um paladino da virtude. Entenderam? Nós, os virtuosos. Eles, os outros – e fez uma careta desaprovadora, bem engraçada – os malvados pecadores.

A ambiguidade da mensagem do Consultor deixou todos, inclusive Alexandre, um pouco atônitos e sem reação. O velhinho prosseguiu, muito compenetrado:

– É preciso algo que dê a oportunidade de controlar e vigiar o outro, onde os ativistas se auto delegam o papel de fiscal e polícia da humanidade. – e aí mudou de tom completamente – Puta que pariu! É isso! Todos queremos ser incumbidos de fiscalizar o outro, isso com certeza vai ter uma resposta estrondosa! Um movimento com alguma porra de mensagem qualquer que separe os justos, nós, os fiscais, dos outros, os criminosos que nós perseguiremos. Que tal, gostaram? Eu sou um gênio, puta que o pariu!

Com certeza, para aqueles que tinham em mente os bordões da justiça, da busca da cidadania e da redução da desigualdade social, aquele início fora um tanto inesperado. Por isso, após alguns comentários paralelos em voz baixa, finalmente alguém se atreveu a formular o que parecia ser a objeção geral:

– Mas, com todo o respeito, senhor Consultor, nós viemos aqui falar de idéias e ideais que contagiem. Não de perseguições – aplausos consideráveis, embora um pouco tímidos, porque a platéia ainda não tinha claro quem seguir.

– E por acaso, meu caro, idéias fazem você contrair o cú? – clima pesado e risadas esparsas, geralmente sem graça. – Não, não se trata só de idéias. Precisamos fazer o eleitor contrair o cú. Aí, sim, nós conseguimos ganhar esta eleição – e então, com muita dificuldade, o bom velhinho levantou-se da cadeira, fazendo todos os presentes recearem por uma queda iminente. – Não, meus caros, o problema é o outro. É preciso dar a oportunidade de não apenas matar, mas torturar o outro.

– O que? Aí o senhor se excedeu – disse alguém na primeira fila.

– Se não for possível torturar, pelo menos matar de modo indolor –
prosseguiu sem hesitação o Consultor, emulando a ação com gestos fortes.

– Como assim?

– Se não matar, pelo menos ferir

– Mas isto vai contra a nossa ideologia pacífica – levantou-se indignado
um rapaz forte, lá no meio.

– Se não for possível ferir, pelo menos dê-lhes o gostinho de atrapalhar
pra caramba a vida do outro – e esfregou as mãos com uma vibração de euforia
sádica, desgarrando-se mais e mais do perfil contido e mal humorado, bem como,
temerariamente, do apoio na mesa. – Se eu atrapalho, eu existo, se eu
atrapalho, eu existo, u-hu, lá, lá, lá! – cantarolou, todo serelepe.

– Assim não dá. Nós não somos esse
tipo de gente que o senhor está pensando – o rapaz forte e indignado, lá do
meio, que ainda não voltara a se sentar, levantou ainda mais a voz.

– Espere, espere. Não há necessidade de exaltação. Você tem razão.

E o Consultor se sentou resignadamente, acalmando por um instante a sala
em vias de ebulição, que leu nessa atitude uma chance de recuo para algo
minimamente mais digerível. Em vão. A figura quase centenária prosseguiu:

– As pessoas não suportam serem confrontadas com a sua própria maldade. É
isso mesmo, você tem toda a razão. É preciso dar-lhes uma rota de fuga, para o
caso de precisarem se olhar no espelho em algum momento, não que essa seja uma
prática comum. Portanto, escutem, marquem bem minhas palavras: é indispensável,
vejam bem, indispensável, sob pena de arruinar o processo todo, que as pessoas
tenham uma razão virtuosa e edificante para seus atos destrutivos – na verdade,
a despeito da gravidade que as palavras procuravam transmitir, aquela dica foi
passada com um tom circunstancial de uma receita culinária – Tanto faz qual é a
razão virtuosa. Aí eu deixo a bola com vocês, que são quem melhor sabe qual é a
vocação do momento. Vai ser só a desculpa para o que interessa, mas precisa ser
bem escolhido, claro.

Silêncio sepulcral. Alguns porque não haviam entendido direito o que fora
dito, e outros porque entenderam perfeitamente.

– O que? Por que estão me olhando? Claro que vocês já sabiam disso. Então
tratem de arrumar alguma merda virtuosa que justifique a perseguição do outro.
Sei lá. Catequizar os pagãos e ateus, instituir a democracia nos povos
bárbaros, acabar com os latifúndios, salvar o pulmão e a saúde dos fumante e
não fumantes, preservar a natureza verde dos perversos capitalistas, purificar
a raça ariana, deter a emissão de CO2 pelas fábricas e governos sedentos de
lucro, preservar a moral e os bons costumes, deter a contaminação da nossa
religião pela religião do outro, lutar contra o imperialismo capitalista ou
contra o totalitarismo comunista, qualquer, mas qualquer merda mesmo onde a
culpa seja do outro. A culpa tem de ser do outro! Aí sim vocês vão conquistar
uma legião de seguidores. Capice? Porra, parem de fazer essas caras de merda,
ou eu vou acabar pensando que vocês são retardados.

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