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como se destrói um monstro sem Se transformar em outro?

É válido gritar em nome do
silêncio?

Depende.

Um prática que tem se consolidado no ativismo (sobretudo norte americano) é o cancelamento automático, que consiste em boicotar e fazer campanha contra tudo o que a pessoa suspeita de preconceito ou abuso já fez na vida. Sem, é bom frisar, uma investigação e um devido processo legal que tenha atestado a culpa. Equivale a um linchamento, para ser bem claro.

O último filme de Woody Allen não
pode passar nos EUA por algo assim (indiretamente: a produtora Amazon vetou),
sem que ele tenha sido condenado por nada e sem que tenha havido qualquer
suspeita disso ligada à produção deste filme em particular. Como não há acusação
formal, a pena de banimento é eterna. Homicidas no Brasil tem pena máxima de 30
anos. Mesmo a Inquisição dava ao condenado a chance da redenção e arrependimento.

Como se destrói um monstro sem
criar outro?

Em primeiro lugar, de quem
pretendemos falar? Não é dos ativistas cínicos e mal intencionados que se
aproveitam de uma certa circunstância para trapacear, roubar, sacanear e se dar
bem. Tampouco dos que adoram gritar e, para isso, aderem ao ativismo da busca
do silêncio. Quero falar dos “de Bem” que, de tanto ajustarem seu comportamento
à ameaça que pretendem derrotar (um sistema econômico, preconceitos, violências
e injustiças em geral), acabam se perdendo. Afrouxam seus princípios morais em
nome da batalha e depois não conseguem mais voltar.

Como isto se dá? A matéria prima
para essa perda de rumo, como não poderia deixar de ser, é o baixo auto
conhecimento. É muito fácil varrer a própria sujeira para baixo do tapete, enquanto
perseguimos terceiros em nome da justiça e do bem comum. No começo é um “eu não
vou conseguir nada sendo bonzinho, não contra uma ameaça desse porte”, que
depois de alcançado algum sucesso se converte num “é só temporário, só até
completar a travessia até o outro lado”. Que, como sabemos historicamente,
nunca chega. Não se você desde o princípio do processo não esteve vigilante
full time para não deixar escapar a inestimável oportunidade do cessar fogo.

Um complicador importante para os
ativistas justos é o componente histórico. Há comportamentos inaceitáveis para
os padrões atuais que foram socialmente aceitos até há bem pouco tempo atrás. Discriminações
de gênero, cor e orientação sexual, ou desatenção com a preservação do meio
ambiente, para nos atermos aos mais óbvios. Muitas obras importantes foram
produzidas nesse contexto. O que fazer, atirar todas ao lixo para que não
contaminem as mentes das novas gerações?

Não pretendo fazer a cartilha do
bom ativismo, mas acho que há erros fáceis que podem ser evitados. Separar
preconceito (pensamento) de crime (ato) seria uma boa medida inicial. No
intervalo de pouco mais de dois séculos até poucas décadas atrás era OK
escravizar negros, era nada menos que óbvio impedir mulheres de votar e
simplesmente lógico atirar os restos do pic nic no rio. Apesar da necessidade
de se combater sem trégua essas práticas no mundo atual, a prudência e o auto
conhecimento nos obrigam a reconhecer que não somos individualmente superiores
a nossos bisavós. Nada indica que tenha havido um progresso genético na nossa
área cerebral que cuida da moral. Foi o meio social que se transformou e
evoluiu, o que não reduz em nada o mérito da mudança.

A questão é que a sociedade não
tem existência física independentemente de nós, cidadãos que a compomos. Sobre
o indíviduo é que recairá o juízo de um comportamento errado, bem como a
sentença e a execução. E, nesse caso, ainda que todos possam ser eventualmente
processados, precisamos diferenciar em termos de gravidade o que é uma idéia
aprendida e hoje obsoleta (mulheres não votam porque só cuidam da casa e nada
sabem de política), de um crime simples como assediar sexualmente e humilhar
publicamente uma colega de trabalho (como aquele ator da Globo).

Espancar um travesti, botar fogo
em um mendigo, torturar um escravo porque pode, todos esses são crimes
cometidos por pessoas violentas, sádicas e que felizmente não correspondem nem
hoje e nem ontem à média da população em tempos de paz. Se essas pessoas um dia
se aproveitaram de uma frouxidão legal para cometer seus abusos, que se reformulem
as leis para não restar dúvida de que estes são crimes, sim.

Mas concluir que estuprar uma mulher é atitude própria
do machismo “que impera em toda a sociedade” é simplesmente o caminho mais
curto para trocar uma injustiça por outra. Há monstros, há criminosos e há
pessoas. Vamos diferenciar sentenças e penas.

O post como se destrói um monstro sem Se transformar em outro? apareceu primeiro em Crônicas Não branco Não homem.