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o que te move prá valer?

Vemos no mundo todo explosões de
descontentamento popular, alguns deles não previstos por ninguém. A ascensão do
PIB per capita recorde na América do Sul e a redução da miséria dos últimos 15
anos tornavam o Chile um desses lugares menos votados como candidato a
agitações populares indignadas. A esquerda viu nos protestos indícios de má
distribuição da riqueza.

Mas em junho de 2013, quando o
Brasil ainda parecia uma maravilha no campo da redução da desigualdade, e sob
um governo de esquerda, centenas de milhares foram às ruas protestar contra o
aumento nas passagens. E países ricos como Inglaterra e os EUA deram guinadas a
direita, igualmente reivindicantes por hordas de insatisfeitos enfurecidos com
o que pareceu, aos olhos deles, “muita sopa para imigrantes e minorias em
geral”. Todas essas eram reclamações justas ou será que o governo desses países
deveria financiar visitas guiadas maciças de suas populações à Libéria, para engrossar
um pouco o couro? (um amigo meu levou um colega liberiano a uma favela em São
Paulo… o liberiano achou que aquilo era vida de rico, sem brincadeira).

A primeira consideração razoável
é que não há uma razão direta e automática entre privação e demanda. As
anoréxicas estão aí a nos provar que mesmo uma necessidade básica como
alimentação passa por um filtro desejante subjetivo. Não importa o quanto seus
corpos esqueléticos gritem por um prato de comida, suas mentes se recusam a
transformar isso em fome.

Na visão abrangente do corpo
social, precisou se passarem duas décadas do pior conflito armado de todos os
tempos (II Guerra Mundial), para que, nos anos 60, quando a economia mundial
disparava com números de fazer corar o mais otimista dos mais otimistas
analistas de mercado, finalmente descobríssemos que o sistema estava todo
errado porque impregnado de preocupações ultra materialistas e hiper
consumistas. Talvez ninguém tenha percebido essa falha em 1941 porque estávamos
ocupados demais morrendo ou enterrando entes queridos.

Para a psicanálise, já não é novidade alguma que a manifestação do desejo não é tão fácil e imediata. Ela depende de um pré requisito, o investimento narcísico. O que isso quer dizer? Que há um processo de elegibilidade para que um desejo suba da instância inconsciente para a consciente. Sem um mínimo de auto estima e confiança na própria capacidade de satisfazer aquela demanda, é preferível matar o desejo no berço, para que a pessoa não corra o risco da frustração. E nem ficamos sabendo da coitada da vontade.

Como diz a letra da música, “eu não sabia que estava procurando por amor, até que o encontrei”. Colocando de outra forma, eu, conforme envelheço, tenho mais medo de não desejar nada do que de ter desejos desatendidos.

Ao olharmos com foco na cidadania,
também podemos dar mais alguns passos na trilha da existência de pré requisitos
para alguém se sentir no direito de querer algo. Me lembro de um gerente de
banco irritado com um senhorzinho muito humilde que queria saber porque o banco
descontara taxa de anuidade de cartões que ele não solicitara. A assimetria da
cena, o todo poderoso cheio de razão versus o indefeso e assustado me obrigou a
intervir. A mudança de atitude do gerente ao falar comigo ainda me arranca tanto
risadas quanto reviravoltas no estômago. Se não nos sentirmos socialmente
aptos, não nos ocorre reclamar de nada.

Qual a conclusão? Para além dos
méritos específicos envolvidos em cada umas das demandas no grande oceano
mundial contemporâneo das queixas, é seguro afirmar que há um processo perverso
pelo qual o mecanismo produtivo (do qual todos participamos, não se trata de
jogar a culpa em algo fora de nós) atira sobre as costas do coitado do
indivíduo um insuperável sentimento de inadequação aliado a uma ilusória
sensação de potência e liberdade de escolha. Desejamos muito porque achamos que
damos conta (senão nem desejaríamos) e porque há lacunas e dívidas a serem
pagas o tempo todo, com o banco, com o espelho, com o tesão e com a felicidade.
Paradoxalmente a dívida fica maior quanto mais temos. Será que estamos
conseguindo desejar o que realmente desejamos? Tem algo mais errado nessa
história toda do que só o preço das passagens.

O post o que te move prá valer? apareceu primeiro em Crônicas Não branco Não homem.